Todo mundo tem acesso aos processos de seus clientes!

Por que a advocacia precisa repensar dados sensíveis na era da IA?

Quando o CNJ digitalizou o Judiciário, a lógica era simples: mais acesso significa mais justiça. Excetuados os processos sob sigilo, qualquer pessoa, leiga ou profissional, pode hoje acessar nomes das partes, valores, teses jurídicas e documentos.

Mas aqui há um paradoxo: o que antes foi sinônimo de democratização e confiança da relação com o judiciário, agora se tornou um preconceito dito e repetido a toda voz: ‘os dados sensíveis de nossos clientes estão em risco, pois as empresas de Inteligência Artificial podem vê-los, acessá-los, e pior, usá-los’.

Derrubando os muros invisíveis

uma análise crítica sobre dados sensíveis e advocacia na era da IA

O debate acerca da exposição de dados sensíveis na advocacia digital parece girar sempre em torno dos mesmos polos: de um lado, o temor do uso indevido por grandes empresas de tecnologia; de outro, a crença nas garantias oferecidas por leis, políticas de privacidade e mecanismos de segurança. Mas, sob uma lente verdadeiramente crítica e lateral, talvez estejamos olhando para o lugar errado ou, no mínimo, deixando de enxergar as arestas mais perigosas do problema.

Ponto cego: a falácia da confiança delegada

Depositamos fé na robustez contratual e regulatória de corporações multinacionais, esquecendo que, nesta arquitetura digital, o elo mais fraco raramente é o código de conduta das gigantes. O verdadeiro risco pode residir em cadeias longas e opacas de subcontratação, data centers terceirizados, desenvolvedores desconhecidos em fusos horários remotos, ou até mesmo nos próprios usuários, que tendem a subestimar as consequências de um clique desatento.

A ilusão da confidencialidade

  • Se todos, absolutamente todos, podem ter acesso aos dados de processos de seus clientes, onde está a verdadeira proteção de dados?
  • Se seus e-mails, mensagens no WhatsApp e mesmo reuniões via ‘Teams ou Meet’ estão trafegando por servidores que você não tem acesso ou controle, onde está a verdadeira proteção de dados?
  • Se seus advogados, hoje, neste momento, estão utilizando a IA (sim, eles estão), para ajudar em seu trabalho diário, por que a resistência em adotá-la institucionalmente?
  • E se as mesmas empresas por onde você trafega esses dados, sensíveis ou não, oferecem uma nova tecnologia, como a IA, por exemplo, por que a resistência em utilizá-la?

Somente ao abandonar as premissas do senso comum e questionar de verdade o momento em que vivemos, tanto do medo irracional quanto da crença cega na tecnologia, a advocacia poderá, de fato, usufruir de todo o potencial da inteligência artificial para melhoria da eficiência, melhoria na qualidade da produção jurídica e por fim, melhoria na qualidade de vida dos advogados.

O custo invisível da transparência irrestrita

Cenários já são possíveis hoje:

  • Legal-Techs vendem sistemas e ‘robôs’ de IA comercialmente para ‘varrer’ todos os tribunais, todos os dias, não apenas para disponibilizar dados detalhados de processos, mas para aplicar jurimetria (análises de previsibilidade estatísticas).
  • Seguradoras mineram processos de saúde e ajustam apólices de forma preditiva, limitando direitos antes mesmo de litígios ocorrerem.
  • Concorrentes vasculham petições para mapear teses, tempos de reação, predisposição a acordos. Estratégia vira vulnerabilidade.

A pergunta deixou de ser “quem pode acessar”. A pergunta passou a ser: “o que pode ser inferido do acesso massivo?”.

O debate torto: IA não é o vilão

Aqui está o erro da narrativa atual: culpar a IA. Não é a tecnologia que ameaça a confidencialidade dos clientes. É a advocacia que insiste em ignorar a nova realidade. Os dados já são públicos. Sempre foram. A IA apenas revelou o óbvio: em escala algorítmica, público também pode ser sensível.

O verdadeiro problema não é tecnológico. É profissional. Falta preparo, confiança e infraestrutura para lidar com um ambiente onde a exposição é inevitável.

Uma terceira categoria de dados

Até hoje, pensamos em duas caixas: público ou sigiloso. A IA criou uma terceira: dados públicos, mas algoritmicamente exploráveis. Essa categoria exige mudanças profundas:

1 Na advocacia

Petições precisam ser enxutas. Cada detalhe desnecessário é munição para mineração de dados.

2 Nos tribunais

Sistemas devem conter barreiras técnicas contra scraping massivo, sem inviabilizar o acesso humano.

3 Na gestão estratégica

Escritórios devem mapear o que já está exposto sobre seus clientes e como isso pode ser explorado.

A encruzilhada da advocacia

Temos duas escolhas:

  • Liderar a discussão, criando protocolos internos e pressionando por soluções técnicas que equilibrem transparência e proteção.
  • Ser liderados por legislações emergenciais, criadas às pressas após crises de privacidade, potencialmente mais restritivas do que o necessário.

Se a advocacia não puxar essa panta, alguém puxará. E não seremos nós.

Transparência inteligente exige advocacia inteligente

Transparência continuará sendo um pilar da justiça. Mas transparência sem estratégia é exposição. Não se trata de paranoia tecnológica. Nem de nostalgia dos cartórios. Trata-se de reconhecer que o jogo mudou. A tecnologia não vai esperar. A escolha é simples: vamos liderar a adaptação ou ser arrastados por ela.

Ponto chave

O verdadeiro desafio, portanto, não é técnico, mas mental. A formação tradicional do advogado pode criar uma barreira para a adaptação a essas novas dinâmicas. A IA não é o problema para lidar com dados sensíveis públicos, pois estes já são acessíveis a qualquer um.

O problema real surge quando advogados, por falta de conhecimento ou desconfiança, alimentam ferramentas como ChatGPT com informações confidenciais de clientes, que jamais deveriam sair do ambiente seguro do escritório.

Enquanto debatemos o futuro da IA, a realidade é que muitos profissionais ainda trafegam dados sensíveis de clientes via e-mail sem criptografia ou mensagens de WhatsApp sem controle, expondo vulnerabilidades que a IA agora pode explorar em escala.

A inteligência artificial não é uma moda passageira; é a nova infraestrutura da informação.

Superar essa barreira de pensamento e ação é o primeiro passo para proteger não apenas os dados, mas a própria relevância e confiança da advocacia no século XXI.